sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Ciclovia do Rio Pinheiros - Nem campo, nem cidade

Depois de mais de dois anos de sua inauguração, finalmente decidimos conhecer a ciclovia do Rio Pinheiros. Badalada pelas filas nos acessos em 2010, imaginava algo inovador na cidade, pois sempre, quando passava por lá, me imaginava pedalando livremente e sem problemas para chegar de A a B em pista reta, bem cuidada e cuidadora dos ciclistas.

Sempre tive a crítica comigo de que a ideia, apesar de boa, era incompleta exatamente por ligar pontos aleatórios da cidade por mera conveniência da empresa estatal que é 'dona' das margens, a CPTM.

Minha outra crítica eterna, como ciclista urbano há quase 20 anos, aos administradoras da capital paulista, é a visão de que bicicleta é lazer, não meio de transporte.

Mas, finalmente, nestes dias de descanso de final de ano, fomos experimentar a ciclovia do Rio Pinheiros.

A empolgação inicial foi brecada pelo forte odor de merda, de água parada e dejetos humanos depositados no canal, que um dia fora rio. Sabia que iria enfrentar isso, pois já tinha esta sensação nos vagões dos trens onde o cheiro de merda se misturava com o ar condicionado e a música clássica destas composições civilizadas e civilizatórias.

De imediato, a minha sensação de estar desbravando uma galeria de esgoto foi recebida por uma pichação na ponte próxima ao acesso da Cidade Universitária: “Rio limpo pescar, nadar, viver. Rio limpo...”.

Obrigado pichador. É o que eu sempre penso quando olho nossos rios-esgotos. Mas, o que imaginava ser superável - afinal, os benefícios da ciclovia iriam compensar este cheiro ao qual me imaginava acostumar-me -, não o era. O cheiro avolumava-se numa sensação de náusea reforçada pela visão das entranhas da destruição da natureza e cursos de água e que, após minutos, se transmutou em uma dor que cabeça que sabia que, após o trajeto feito, se estenderia.

E assim saímos a pedalar, apesar de tudo. Linha quase reta, como era de ser uma pista às margens de um rio, ponto mais baixo da cidade, sem colinas, nem morros, nem ladeiras.


Nos primeiros três quilômetros, a facilidade da pista deu lugar ao desaconchego da visão de um rio extremamente poluído, visivelmente assoreado por lodo e dejetos sólidos, dando para ver ilhas de areia e entulho em toda sua extensão. Na fina lâmina líquida – pois é duvidável se podemos chamar o líquido preto-esverdeado, em fermentação, de água – o resíduos flutuantes como corpos de animais, garrafas pets, madeiras, isopor e outras coisas que lá ousavam pousar – dançavam, não ao movimento da corrente, pois esta inexistia, mas ao movimento do vento, que assoprava um boa brisa.

Não dava para não olhar as águas sujas sendo despejadas por canos e entradas por toda a parte, de fato, a facilidade da pista permitia esta viagem pelas entranhas da urbe excludente, destruidora e poderosa. Pedalar ao lado pilhas de entulho coletados do rio e o suposto-rio em si é uma experiência, pensei comigo mesmo, que todos os alunos de ensino fundamental e médio deveriam ter.

Mas aí, comecei a prestar atenção na outra margem: a do leito dos trilhos de trem. Separados devidamente por uma cerca e alguma vegetação, éramos excluídos das estações ao longo da linha Esmeralda da CPTM que liga Osasco ao Grajaú.

Das plataformas, os passageiros nos olhavam com curiosidade, a esperar o expresso. Senti-me como um animal de zoológico. Um ser a parte da cidade. Coisa que não cabia na urbe.

Projetada convenientemente como uma opção de lazer, a ciclovia do Pinheiros atraía, em pleno dia de semana, apenas os 'atletas'. Quase nenhum dos ciclistas estava lá indo e vindo nos afazeres do dia a dia da cidade. E esta é a minha crítica principal.

Foram quase R$5 milhões gastos nesta pista, ou mais ou menos R$233 mil por quilômetro. Da Lapa à usina da Traição, pista nova, mas da Traição ao Grajaú, apenas uma repintura da pista de manutenção já existente e, chocadamente, pouquíssimos pontos de acesso. São apenas quatro, com promessas não cumpridas de mais, ao longo de 18 estações da linha Esmeralda.

Arriscamos, mesmo depois de sol escaldante sem uma sombra sequer, a continuar o trajeto após a Traição. E foi, a partir daí, que se acirrou este sentimento que descrevo agora, principalmente na volta do nosso trajeto de 24 desoladores quilômetros.

Passávamos por debaixo de pontes, antes nunca feito por nós, cidadãos da classe média paulistana, únicos e bem vindos pontos de descanso e sombra. Descanso do sol implacável, momento de se integrar com... o concreto.

Ao passar o Parque do Povo, ao lado da estação Cidade Jardim, inacessível para nós ciclistas urbanos, tive certeza de que não era apenas uma alienação minha, mas sim uma intenção do planejadores da cidade: quem quer pedalar em São Paulo, o faz à sua conta e risco, e será punido por tamanha ousadia.

Sim, punidos. A ciclovia do Pinheiros não é integrada à cidade. E tampouco é campo. É um não lugar. Um limbo. Um castigo, sem árvores, com pouquíssimos pontos de acesso, com fedor, entulho e tráfego de carros e caminhões de manutenção que nos empurram para fora da pista.

No final, de volta ao nosso ponto de partida, Estação Cidade Universitária, punidos por ter que descer da bicicleta para empurrar passarela acima com mais de 10 rampas, me senti aliviado ao pedalar de novo na cidade, debaixo de árvores, margeados por casas e vida, longe do cheiro de degradação.

Nós, ciclistas urbanos, conhecemos bem este sentimento de exclusão. Somos, o tempo todo, jogados para as sarjetas, fechados por caminhões e carrões caros com vidros fumês, escondidos em estabelecimentos que abrem milhares de metros quadrados para estacionar carros mais sem um único bikepark que não seja convenientemente não-pensando num antro vazio.

Mas, tudo isso, é estar na cidade, é possível lutar por seu espaço após optar pela bicicleta como meio de transporte.

Na ciclovia mais famosa da cidade, isto não é possível, estar lá é ser excluído da cidade, sem integração com parques e outras ciclovias, sem sombras e jogados, como entulho, lixo, esgoto, na margem de um rio que um dia decidimos não querer.

É uma experiência essencial e obrigatória para pensar nossa cidade, mas duvido que a repetirei, pois, lá, soube exatamente a cidade que não quero.