Depois de mais de dois anos de sua inauguração, finalmente
decidimos conhecer a ciclovia do Rio Pinheiros. Badalada pelas filas
nos acessos em 2010, imaginava algo inovador na cidade, pois sempre,
quando passava por lá, me imaginava pedalando livremente e sem
problemas para chegar de A a B em pista reta, bem cuidada e cuidadora
dos ciclistas.
Sempre tive a crítica comigo de que a ideia, apesar de boa, era
incompleta exatamente por ligar pontos aleatórios da cidade por mera
conveniência da empresa estatal que é 'dona' das margens, a CPTM.
Minha outra crítica eterna, como ciclista urbano há quase 20
anos, aos administradoras da capital paulista, é a visão de que
bicicleta é lazer, não meio de transporte.
Mas, finalmente, nestes dias de descanso de final de ano, fomos
experimentar a ciclovia do Rio Pinheiros.
A empolgação inicial foi brecada pelo forte odor de merda, de
água parada e dejetos humanos depositados no canal, que um dia fora
rio. Sabia que iria enfrentar isso, pois já tinha esta sensação
nos vagões dos trens onde o cheiro de merda se misturava com o ar
condicionado e a música clássica destas composições civilizadas e
civilizatórias.
De imediato, a minha sensação de estar desbravando uma galeria
de esgoto foi recebida por uma pichação na ponte próxima ao acesso
da Cidade Universitária: “Rio limpo pescar, nadar, viver. Rio limpo...”.
Obrigado pichador. É o que eu sempre penso quando olho nossos
rios-esgotos. Mas, o que imaginava ser superável - afinal, os
benefícios da ciclovia iriam compensar este cheiro ao qual me
imaginava acostumar-me -, não o era. O cheiro avolumava-se numa
sensação de náusea reforçada pela visão das entranhas da
destruição da natureza e cursos de água e que, após minutos, se
transmutou em uma dor que cabeça que sabia que, após o trajeto
feito, se estenderia.
E assim saímos a pedalar, apesar de tudo. Linha quase reta, como
era de ser uma pista às margens de um rio, ponto mais baixo da
cidade, sem colinas, nem morros, nem ladeiras.
Nos primeiros três quilômetros, a facilidade da pista deu lugar
ao desaconchego da visão de um rio extremamente poluído,
visivelmente assoreado por lodo e dejetos sólidos, dando para ver
ilhas de areia e entulho em toda sua extensão. Na fina lâmina
líquida – pois é duvidável se podemos chamar o líquido
preto-esverdeado, em fermentação, de água – o resíduos
flutuantes como corpos de animais, garrafas pets, madeiras, isopor e
outras coisas que lá ousavam pousar – dançavam, não ao movimento
da corrente, pois esta inexistia, mas ao movimento do vento, que
assoprava um boa brisa.
Não dava para não olhar as águas sujas sendo despejadas por
canos e entradas por toda a parte, de fato, a facilidade da pista
permitia esta viagem pelas entranhas da urbe excludente, destruidora
e poderosa. Pedalar ao lado pilhas de entulho coletados do rio e o
suposto-rio em si é uma experiência, pensei comigo mesmo, que todos
os alunos de ensino fundamental e médio deveriam ter.
Mas aí, comecei a prestar atenção na outra margem: a do leito
dos trilhos de trem. Separados devidamente por uma cerca e alguma
vegetação, éramos excluídos das estações ao longo da linha
Esmeralda da CPTM que liga Osasco ao Grajaú.
Das plataformas, os
passageiros nos olhavam com curiosidade, a esperar o expresso.
Senti-me como um animal de zoológico. Um ser a parte da cidade.
Coisa que não cabia na urbe.
Projetada convenientemente como uma opção de lazer, a ciclovia
do Pinheiros atraía, em pleno dia de semana, apenas os 'atletas'.
Quase nenhum dos ciclistas estava lá indo e vindo nos afazeres do
dia a dia da cidade. E esta é a minha crítica principal.
Foram quase R$5 milhões gastos nesta pista, ou mais ou menos
R$233 mil por quilômetro. Da Lapa à usina da Traição, pista nova,
mas da Traição ao Grajaú, apenas uma repintura da pista de
manutenção já existente e, chocadamente, pouquíssimos pontos de
acesso. São apenas quatro, com promessas não cumpridas de mais, ao longo de 18 estações da linha Esmeralda.
Arriscamos, mesmo depois de sol escaldante sem uma sombra sequer,
a continuar o trajeto após a Traição. E foi, a partir daí, que se
acirrou este sentimento que descrevo agora, principalmente na volta
do nosso trajeto de 24 desoladores quilômetros.
Passávamos por debaixo de pontes, antes nunca feito por nós,
cidadãos da classe média paulistana, únicos e bem vindos pontos de
descanso e sombra. Descanso do sol implacável, momento de se
integrar com... o concreto.
Ao passar o Parque do Povo, ao lado da estação Cidade Jardim,
inacessível para nós ciclistas urbanos, tive certeza de que não
era apenas uma alienação minha, mas sim uma intenção do
planejadores da cidade: quem quer pedalar em São Paulo, o faz à sua
conta e risco, e será punido por tamanha ousadia.
Sim, punidos. A ciclovia do Pinheiros não é integrada à cidade.
E tampouco é campo. É um não lugar. Um limbo. Um castigo, sem
árvores, com pouquíssimos pontos de acesso, com fedor, entulho e
tráfego de carros e caminhões de manutenção que nos empurram para
fora da pista.
No final, de volta ao nosso ponto de partida, Estação Cidade
Universitária, punidos por ter que descer da bicicleta para empurrar
passarela acima com mais de 10 rampas, me senti aliviado ao pedalar
de novo na cidade, debaixo de árvores, margeados por casas e vida,
longe do cheiro de degradação.
Nós, ciclistas urbanos, conhecemos bem este sentimento de
exclusão. Somos, o tempo todo, jogados para as sarjetas, fechados
por caminhões e carrões caros com vidros fumês, escondidos em
estabelecimentos que abrem milhares de metros quadrados para
estacionar carros mais sem um único bikepark que não seja
convenientemente não-pensando num antro vazio.
Mas, tudo isso, é
estar na cidade, é possível lutar por seu espaço após optar pela
bicicleta como meio de transporte.
Na ciclovia mais famosa da cidade, isto não é possível, estar
lá é ser excluído da cidade, sem integração com parques e outras
ciclovias, sem sombras e jogados, como entulho, lixo, esgoto, na
margem de um rio que um dia decidimos não querer.
É uma experiência essencial e obrigatória para pensar nossa
cidade, mas duvido que a repetirei, pois, lá, soube exatamente a
cidade que não quero.